sábado, 10 de novembro de 2012

Cuica de Santo Amaro e as memórias do último bonde

Por Nilson Galvão

"Cuica de Santo Amaro", o documentário sobre esse mítico personagem da Salvador "do tempo em que até os automóveis davam bom dia", dirigido por Josias Pires e Joel Almeida, é muito bom. Gostei do ritmo, da pesquisa de imagens, da edição, do grafismo, da costura, da maneira esperta como se articulam as peripécias do poeta pop
ular, ambulante do noticiário, e os modernos cuícas radiofônicos, Macunaímas de ontem e hoje.


Para além dessa experiência estética, lembrei que meu pai de vez em quando lembra das vindas dele, um sertanejo de Santa Teresinha, a Salvador. Da cidade que era bem diferente, dos bondes e do ponto de ônibus que era ali pelo centro antes de haver rodoviária. Fiquei imaginando se ele não parou pelo menos uma vez naquelas rodas em torno do endiabrado Cuíca, como todo aquele povo dando risada das reportagens-denúncias-crônicas
em versos. Vou perguntar. Mas enfim, essa história de viver as memórias do meu pai na velha Bahia e me contrabandear pra dentro delas rendeu inclusive esse poema de tempos atrás:

O último bonde


Devo ter perdido o último bonde,
/ aquele onde meu pai, um dia, / esqueceu uma maleta cheia de seus / papéis na juventude. Devo ter ido a pé, / pela calçada, pelo comércio, / pela colina sagrada. Devo ter confundido meu pai / com tanta gente. Um homem planejando /
casar e ter filhos, um homem só, na / madrugada, sem a sua maleta para abrir / e viajar. Devo ter tomado um ônibus / quando nem havia rodoviária, e descido / na mais recôndita cidade do universo. // Devo ter enxergado poesia numa casa /simples, nas crianças, num cachorro preto / maluco, cujo estranho hábito era atirar-se, / sofregamente, debaixo de cada carro que / passava pela rua. Numa gata cega que / se batia nas pernas das cadeiras, sob a mesa, /
uma gata cega e arisca, cujos filhos / não vingavam até chegar um que, / noite após noite, miava junto ao / quarto do menino magrinho para acordá-lo / e fazê-lo abrir a janela, e então entrava /
e dormia enroscado em seus pés. // Devo ter sido meu pai enquanto acariciava, / absorto, assistindo ao noticiário, / os cabelos do menino cortados no barbeiro míope, / Mister Magoo, cabelos de homem de verdade, / com todos aqueles caminhos de rato.