Um personagem sobre o qual deveríamos silenciar. É o que pensa algumas fontes potenciais do filme documentário que estamos realizando neste momento. Fontes que se recusam a falar diante da câmara. Constatamos que Cuíca de Santo Amaro continua sendo temido, odiado e amado. E que pessoas "bem pensantes" contemporâneas de Cuíca ainda o tomam como personagem menor, marginal, insignificante. Que sequer vale um filme. Mas o que vale mesmo é que esta não é a voz do povo. O povão adorava Cuíca, divertia-se com as suas graças, piadas e versos ferinos e picantes.
A tentativa de black-out na memória, de escrever a história da cultura baiana sem a presença de Cuíca felizmente não foi compartilhada por Dias Gomes e Jorge Amado. O mais traduzido escritor baiano imortalizou o trovador repórter em sua literatura. Em 1943 publicou no jornal "Diretrizes", e em 1945, no livro "Bahia de Todos os Santos" textos que enaltecem o caráter de herói popular do Cuíca anti-fascista. Depois Jorge faria Cuíca personagem dos romances "A morte e a morte de Quincas Berro D'Água", "Pastores da Noite" e "Tereza Batista Cansada de Guerra". E Dias Gomes revelou o trovador de corpo inteiro na peça "O Pagador de Promessas", que virou o filme vencedor da Palma de Ouro em Cannes (1962).
Até meados da década de 1950 a imprensa tratava Cuíca como um personagem popular muito presente na vida da cidade, um defensor do povo. Na segunda metade da década é que apareceram reportagens descrevendo os métodos de atuação daquele homem "desabusado", como se autodenominava. Métodos que fizeram d'Ele, O Tal, um poeta que incomodou a todos os poderosos que tinham algo a esconder; ao mesmo tempo que fez a alegria do povo nas praças e ruas da cidade com sua irreverência e destemor. Cuíca foi um modernizador dos costumes. Escancarou os "podres" de uma sociedade hipócrita, que se transformava célere em meio ao turbilhão de novidades que o mundo estava produzindo naquele momento. Fruto do seu tempo, Cuíca defendeu com versos em punho o seu próprio quinhão na guerra diária em que vivia.
É certo que nesta defesa Cuíca virou instrumento de chantagens. Trocou muita informação por dinheiro. Longe dele ter sido o inventor da extorsão jornalística. Mas jamais pousou de vestal. Cuíca cutucava a todos, inclusive os homens da imprensa e seus patrocinadores, e não escondeu de ninguém que cobrava o seu bocado.
Possuidor de uma coragem desassombrada, avisava nas contracapas dos livrinhos que a estória narrada era "Matéria Paga. Tenho dito!". Em vários folhetos explica nos versos os procedimentos usados para fazer o texto, indica as fontes e o valor pago pelos interessados na publicação. Para Cuíca era preciso dar nome aos bois. Ou então que pagassem para que a informação deixasse de circular. Um tipo perigoso. Um poeta picaresco. Macunaímico. Expressão mítica de um herói popular brasileiro.