Documentário lança luz a respeito da
trajetória do poeta-repórter que alimentou o imaginário popular de Salvador em
seus tempos de província.
por Raul Moreira
Do Seminário Magazine
Lá pela metade dos anos 2000,
separadamente, o cineasta Joel de Almeida e o jornalista Josias Pires começaram
a desenvolver projetos que tinham como objetivo descortinar um personagem
emblemático que alimentou o imaginário popular de Salvador no século passado,
conhecido como Cuíca de Santo Amaro. E quis o destino que os dois unissem
forças e transformassem os seus desejos em uma árdua pesquisa que acabou
resultando em um documentário financiado pela Petrobras.
Já visto em São Paulo, no Festival É
Tudo Verdade, Cuíca de Santo Amaro
será projetado pela primeira vez na Bahia no Festival Cine Futuro – VIII
Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual. E, naturalmente, o filme, em
película e com pouco mais de 1 hora e 15 minutos, tem importância não apenas pelo
fato de se constituir um importante documento a respeito de um personagem que
merecia aprofundamento, como, também, pela forma através da qual a dupla de
autores o construiu.
Dispondo apenas das imagens da
participação de Cuíca de Santo Amaro no filme A Grande Feira, de Roberto Pires,
lançado em 1961, no qual ele aparece no início e no fim, além de poucas fotos e
de nenhum registro sonoro, Pires e Almeida foram hábeis em construir o roteiro
com elementos visuais e auditivos que supriram essas ausências: a velha Cidade
da Bahia foi apresentada em um belo preto e branco, animações dão sentido a
certos discursos, enquanto um ator, de forma convincente, fez a voz de Cuíca,
recursos que, associados aos
depoimentos dos entrevistados, compuseram o mosaico apurado do personagem.
A respeito da questão, Pires indagou:
“Como fazer um filme longa-metragem sobre um personagem de quem temos
pouquíssimas imagens? Esta pobreza imagética nos impôs definitivamente o viés
do personagem cronista social, Cuíca cronista da cidade da sua época. E daí
fomos buscar os arquivos disponíveis com imagens da Cidade da Bahia de Todos os
Santos das décadas de 1930, 40, 50 e 60 e cruzá-las com os assuntos trazidos
pelo personagem”.
Mas quem é Cuíca de Santo Amaro? No
documentário há uma inclinação maior em apresentá-lo como “um herói do povo, um
poeta de língua maldita que usou o seu talento em defesa dos interesses
populares”, como afirmou Joel de Almeida. No entanto, algumas brechas dão a
entender que Cuíca era também um manipulador, um tipo que fazia o seu interesse
e o interesse de quem lhe pagasse, como
afirmou Pires: “ele também era um
anti-herói que trafegava por terrenos complicados”.
Como reconheceram os dois autores,
ainda hoje a figura de Cuíca de Santo Amaro gera polêmica, por representar o
arquétipo do herói e ao mesmo tempo de alguém pouco recomendável na cabeça de
quem o conheceu. “Houve quem se negasse a falar sobre ele, por considerá-lo um
personagem maldito e que feria a noção de boa conduta naquela época”, diz
Josias Pires.
No entanto, exceção de um e de outro
depoimento, como o do jornalista Mino Carta, que se deu a um bom-mocismo ao
julgá-lo sem o devido conhecimento de causa, a montagem, claramente, favoreceu
a construção da identidade de Cuíca como um simpático, um zombeteiro, um
Gregório de Matos sem a boa pena, um que se travestiu de “veículo de
comunicação” ambulante para informar ao seu modo em uma Salvador que era
praticamente analfabeta.
Em um artigo publicado no online Caderno de Cinema, Josias Pires
chega a afirmar: “A realização de um documentário, lembra o mestre Eduardo Coutinho, é
operação bastante arriscada, pois você começa e não sabe aonde vai exatamente
chegar. É a forma vazia, segundo Geraldo Sarno. O filme muda a cada momento em
que está sendo feito, desde a concepção, aos primeiros argumentos e roteiros
até o último minuto estamos fazendo ajustes, é sempre uma obra inacabada”.
A respeito do discurso segundo o qual
o documentarista brasileiro muitas vezes não consegue se distanciar do objeto
de apreciação e acaba por mascarar o seu sentido de realidade, Joel de Almeida
acredita que Cuíca de Santo
Amaro reflete a tendência de uma pesquisa:
“A inclinação da montagem seguiu uma linha, um pensamento que se apresentou
favorável a Cuíca e que apontou para a compreensão e a importância dele no seu
tempo, na realidade de sua cidade”.
Na verdade, a pesquisa da dupla, que
inicialmente passou pelos escritos de Edilene Matos, que lançou O Boquirroto de Megafone, e do brasilianista norte-americano
Mark J. Curran, autor de Cuíca de Santo
Amaro Poeta-repórter da Bahia, uma vez sintetizada em audiovisual
foi importante não apenas para compor o personagem, mas, também, por
revelar um verdadeiro mosaico antropológico e sociológico da Cidade da Bahia. E, através dele,
pode-se compreender as belezas e misérias da cidade e de sua gente tempos
atrás, as quais parecem iguais aos dias de hoje.